Duas batidas de insurgência.
Duas batidas na porta. ES-PA-ÇA-DAS.
O incomodo por ter sido tão devagar e pela falta de continuação. Quem
dá duas batidas na porta?
O comum é cinco. Contara. A maioria dá cinco batidas rápidas. Assim:
TocTocTocTocToc.
Outras, as pessoas mais tranquilas e educadas, batem quatro vezes, com
leves intervalos, cada um de meia duração do “toc”. Mas assim? Duas espaçadas?
Era impossível ignorar o incomodo. Teria gritado dali “Cadê a terceira batida
que esse ritmo pede? ”. Teria gritado, se a força da voz não fosse ainda menor
que das pernas.
Ergueu-se do lastimável estado quase inanimado do sofá. Dentro do
peito a raiva pela repetição inadequada daquela batida. Infeliz. Fizera de
propósito ou ser um impropério era seu normal?
Levou a mão velha e rígida até o porta chaves e tremulamente
chacoalhou as tantas entre os dedos até localizar a que mais lhe era válida
agora. Enfiou com pouquíssima destreza na fechadura, e ali, girou duas vezes,
antes de levar a mesma mão enrugada até a maçaneta.
À sua frente, de sobrancelha arqueada de modo sarcástico, e claro, o
sorriso puxado de lado, ela lhe olhava.
“Cretina!”, gritou o velho de voz fraca. “Me abandonou. Me
abandonou.”, berrou ainda mais, porém junto à tosse e à tremedeira, não se
impunha tanto quanto desejava. “Como ousou voltar?”.
Ela, a dama, não respondeu. Apenas entrou. Estava tão madura quanto o
velho de cabelos brancos e rugas que só deixavam seu rosto mais bonito. Nos
pés, nada de salto, apenas a sapatilha confortável. Sentou-se no sofá e encarou
o contragosto do anfitrião, como quem espera, obviamente, que lhe tragam pelo
menos uma xícara de café.
Ele, o rígido e intolerante senhor, fechou a porta, mas esqueceu-se de
trancar, pois passava seu olhar para a senhora ali, que de maneira sabia e
ousada, dera as duas malditas batidas na porta. Não terminou o cadenciar, não
fechou a melodia, para que ele se movesse.
Sabia o que ela queria ali.
E se negaria até o final.
Olhou a por um tempo impossível de contar no relógio.
Sabia sim, o que ela queria ali.
Mas será que deveria ceder?
Olhou para suas mãos,
para seus pés naquele chinelo de pano velho,
e
depois para a elegância simples e sensata da dama.
Sabia o que ela queria.
A conhecia muito bem.
De muitos anos atrás.
Ele levantou-se, rangendo os dentes no resmungo cada vez menos e
sentou-se ao piano empoeirado. Fechou os olhos. No início foi difícil, os dedos
doíam. Mas disfarçadamente via a dama a encorajá-lo, dançando sua melodia com
um meneio leve de cabeça.
Assim foi. Nota atrás de nota, e então a escrita trêmula na partitura.
E voltava o trecho, e reescrevia, e nota atrás de nota, até que o dia lá fora
virou noite.
Terminada a tarefa, o velho músico sentindo-se grato e confuso
sentou-se ao lado da dama e com cuidado para não afastá-la tocou-lhe a face
como se esperasse lhe beijar:
– Como pôde deixar de me visitar, senhora? – E lhe escapou uma
lágrima.
Ela, sorrindo, lhe devolveu:
– Você, meu senhor, foi quem parou de abrir a porta.
E antes que seu beijo se consumasse, ela tornou estrelas facetadas e
translúcidas, sumindo no ar na poeira brilhante que uma brisa inapropriada
soprou.
O choro já não foi mais contido, porém, ele levantou-se, ainda
sentindo as dores da idade avançada, mas feliz. E enquanto seguiu para a
cozinha a fim de preparar seu café e superar as lágrimas de uma mágoa antiga, dançava em pequenos embalos, cantarolando
sua nova melodia.
E do lado de fora, na calçada, as crianças se perguntavam o que havia
com o velho ranzinza, que trocara os gritos e resmungos, pelo piano.
*Imagem: Pixabay
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